O Parto

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          Já ouvi dizer que caminhar ajuda no trabalho de parto, mas… De madrugada?! Em pleno temporal?! Em vez de estrela-guia, os raios rabiscavam o céu feito criança com giz de cera na parede. O guarda chuva grande protegia bem o corpo dela e minha orelha direita também. Enxurrada no tornozelo e longe da maternidade, lá íamos nós noite a fora. Maria Emília, enfermeira de plantão, era uma velha conhecida de outros partos. Antes mesmo que chegássemos ao balcão de atendimento já havia acionado o médico de plantão. O bendito chegou como quem estivesse em plena noite de núpcias. Cabelo desgrenhado. Jaleco a recompor-se. Sequer olhou para minha esposa. Passou-me a receita. Disse-me que ainda não estava na hora… que podíamos voltar para casa. Incrédulo com o que li no papel, perguntei desconfiado:

— Buscopan não é remédio para aliviar a dor, doutor?! Foi isto mesmo que li?! Tive dúvidas porque letra de médico é pictográfica e precisa ser decifrada.

— Sim! Respondeu ainda bocejando.

— E as dores e contrações não dizem nada?! Disse-lhe esperando uma resposta plausível.

— Sim , mas…

— Então vai receitar Buscopan pra sua Mãeeee! — a frase saiu feito coice de mula. — Pode voltar a dormir… Maria Emília, me chame um médico com urgência, por favor! Pedi a ela com as mãos postas.

— Sandro… Ele é médico… É o médico de plantão, Sandro! Disse-me desconcertada.

— Chame outro… Este não! Este comprou o diploma, se é que tem um… além de tudo é dorminhoco! Disse-lhe avaliando a figura da cabeça aos pés, que agora me olhava estupefato.

          Não demorou um minuto para que outro médico viesse e tomasse conta da situação. Fez a avaliação. Levou-a para sala de parto. 10 minutos depois ouvi um berro seguido de silêncio. Não ouvi choro de bebê. Estava como um leão faminto na jaula quando Maria Emília antecipando minhas intenções me acalmou:

— Você vai poder ver a criança por aqui, Sandro! Disse-me sorrindo.

Boquiaberto, vi aquele bitelo de menino passar. A felicidade atracou-se com a apreensão. 4.850 kg e 54 cm. Como ele passou?! Foi parto normal, mesmo?! Como ela está?! Está viva?!

— Nada que uns pontinhos não resolvam Sandro… Vai vê-la!

          O menino ganhou o nome do médico ali mesmo na maternidade. Dr.Renan foi incisivo. Médico abençoado. O mesmo responsável por validar a gravidez e pelo pré-natal da Priscilla. Homenagem merecida.

          Mais tarde naquele dia, durante o horário de visitas, soube que várias crianças não tiveram a mesma sorte. Alguns pais estavam revoltadíssimos. Perderam seus primogênitos porque havia passado a hora de nascer. Fiquei atônito. Um deles balançava a receita no ar, gritando por justiça. A mesma receita que reconheci pelo garrancho.

Sandro Ernesto 28/10/2020

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35 Resultados

  1. chica disse:

    Que leitura maravilhosa e que grandão e lindo o bebezão! Adorei ler e ver que após todas as preocupações, bem justificadas, chega um médico que SABE das coisas. Beleza! Infelizmente nem todos assim são! Parabéns, Gostei da história da Priscilla também! abraços, chica

    • panografias disse:

      Obrigado pela leitura e comentário tão gentil aqui Chica. Este bebezão está hoje com 1,92 e mais de 90 kg beirando os 30 anos. Nesta época, duas cunhadas e uma colega de trabalho perderam seus bebês por negligencia médica. Neste caso sempre fiquei atento… sei que somos suscetíveis a erros. Que seus dias sejam abençoados minha querida amiga… beijo no coração!

  2. Léo Campos disse:

    “Em vez de estrela-guia, os raios rabiscavam o céu feito criança com giz de cera na parede”, nossa, isto é lindo. Boa história.

    • panografias disse:

      O engraçado nesta história minha amiga, é que não possuía carro na época. Então peguei o contato de dois taxistas amigos meus deixando-os de sobreaviso. O que parecia ser uma chuvica (como diz Maju do tempo rsrsrs) virou um temporal , e quem é que contraria uma gestante nesta situação?! Fato é que, foi justamente esta caminhada que ajudou fazendo com que questionasse o parecer do médico de plantão. Tivemos um final feliz graças a Deus! Obrigado pela leitura e comentário minha querida amiga… beijo no coração!

  3. Vall Nunnes disse:

    Sandro, você é um narrador personagem de um milhão quilates!
    Tô amando conhecer sua vida pelos seus escritos. Parabéns para o Renan e para sua esposa. A história da Priscilla é linda. A do Renan cheia de adrenalina!
    Mal posso esperar as próximas. São mais seis filhos?
    Xeru
    admirovocedemaispontocompontobeerre

    • panografias disse:

      Na realidade Vall, a matemática é simples: eu tenho 4 filhos, ela tem 4 filhos e nós dois juntos temos 5 filhos kkkkkk (vou deixar esta incógnita rsrsrs). Pode parecer brincadeira, mas pessoas que se lembraram desta história que contei, conseguiram evitar o pior para seus primogênitos. Temos que ficar atentos sempre! Tenho muitas histórias de maternidade e hospital que você nem imagina rsrsrs (lembrei de uma vez que uma amiga se queimou kkkkk acho que esta será a próxima) Obrigado pelo carinho de sempre minha querida amiga! gosdimaisdocepontocompontobeerre

  4. Bia Perez disse:

    Quanta coisa acontece num parto… e mudaram mesmo. Adorei Sandro.

    • panografias disse:

      Bia, minha querida amiga… quando se fala em parto, tenho como referência minha mãe e seus 11 filhos. Seis deles passaram pelas mãos hábeis e abençoadas de uma parteira em casa e isto inclui eu que sou o quarto. Portanto, ainda que pequeno, me lembro de Don’Ana nos brindando com tarefas de enfermaria do tipo: por água para esquentar, buscar gaze, algodão e álcool , higienizar a famosa bacia. Era um verdadeiro acontecimento. Os médicos aprendiam muito com elas. Muita coisa mudou de lá para cá, mas os sinais de trabalho de parto continuam os mesmos. Não dá para aceitar erros passivamente. Obrigado pela leitura e comentário… beijo no coração!

    • Bia Perez disse:

      Verdade

    • Bia Perez disse:

      Compreendo perfeitamente estes sentimentos . Boa reflexão. Bom final de semana

  5. Rodrigo Meyer disse:

    Que bonito e triste ao mesmo tempo. Feliz que sua atitude deu o resultado necessário, mas é triste ver como alguns médicos nem poderiam exercer a profissão ou sequer se formarem. Já dei muita aula pra médico também. Muitas vezes temos que ignorá-los e seguir um pingo de coerência pra ficarmos no caminho certo das coisas. Em 2020 as coisas ainda não mudaram. Acho que até pioraram. Cada vez mais se “formam” médicos com ainda mais facilidade e sem critério algum. Quando vão “exercer” o trabalho, fazem de tudo pra ver o dinheiro sem precisar trabalhar. E como atrapalham! Se simplesmente não atuassem, já seriam de enorme ajuda.

    • panografias disse:

      Tem razão meu caro amigo… existem diversos tipos de profissionais, e se tratando de médicos é melhor não facilitar. Como disse no comentário de Bia, os sinais de trabalho de parto continuam os mesmos… não dá para aceitar equívocos. Renan caminha para casa dos trinta e gosta de dizer que “… de médico e louco, seu pai tem um pouco” kkkkk. Obrigado pela leitura e comentário… Um forte abraço

    • Rodrigo Meyer disse:

      É isso aí. Antes das faculdades de Medicina, as pessoas já pariam. rsrs

  6. Gabriela disse:

    Quase cinco quilos, em? Um nenezão rs!
    Graças a Deus deu tudo certo no final das contas, aliás a Deus e a você né?
    Complicado que existam médicos assim tão desleixados, mas existem e quem sofre com isso é o povo :/

    • panografias disse:

      Menina do céu…quando eu vi o tamanho que era o menino e soube que foi parto normal, passei a respeitar ainda mais as mulheres kkkkkk realmente não é para qualquer um não! Gosto de contar esta história por causa do contraste entre os profissionais, e suas consequências. Meu menino ganhou o nome do bom doutor e se tornou um bom homem. Sei que existem médicos dedicados e não podemos julgar todos, mas uma boa parte deles fica a desejar. Obrigado minha querida amiga pela presença e comentário… beijo no coração!

  7. Que bom que deu tudo certo! Adoro como conta uma história. E um viva ao bebezão!

    • panografias disse:

      Nicole, minha querida amiga… Graças a Deus, para nossa família tudo acabou bem, mas para outros pais a história terminou de uma forma triste. O difícil de contar uma história destas é porque existe mais elementos que temos que deixar de fora senão vira uma novela mexicana kkkkkkkkk. De qualquer forma a mensagem está dada: “Não deixem para parir depois, o filho que quer nascer agora” rsrsrs ou mais ou menos isto! Que sua noite seja abençoada… beijo no coração e obrigado!

    • Ahahaha sei como é a parte da novela mexicana, também preciso cortar muitos elementos quando conto alguma. E a mensagem resumiu muito bem, eles que sabem a hora que querem nascer. Beijos!!

  8. Mariana Gouveia disse:

    Eu perdi dois nessas mesmas condições. Hoje, tenho Lauro Rodrigo, de 32 anos.
    E viva Renan e sua família linda! 30 anos, já deve ter sua família também. Abraço

    • panografias disse:

      Mariana… eu posso imaginar como foi traumática esta experiência. O que não terminei de contar é que conhecia o pai que gritava por justiça. No seu desespero ele me confidenciou que estava armado pronto para descarregar a arma no médico plantonista. Tive serenidade bastante para abraça-lo e deixa-lo desabar em choro, para depois convence-lo de que naquele momento a esposa dele precisava mais do que nunca de apoio emocional. O tempo se encarregou de presenteá-los com um casal de filhos. Tenho certeza de que o Lauro Rodrigo tem o maior orgulho de ti. O Renan hoje está casado à 6 anos com uma menina que vi crescer… resumo da história: não ganhei uma nora, ganhei outra filha rsrsrsrs Amo os dois! Obrigado por tudo minha querida amiga… beijo em seus corações!

  9. JCDattoli disse:

    Muito bacana, Sandro, mais essa narrativa que você nos brinda. Apesar de tudo, com final feliz é sempre melhor! Rsrs
    Parabéns!!!

    • panografias disse:

      Minha gratidão meu querido amigo… pela sua leitura e comentário sempre tão gentil. Acredito que “tudo na vida tem um porquê” mas não podemos cruzar os braços diante de certos acontecimentos. Não arrependo horas nenhuma de manda-lo “receitar o remédio para a mãe dele” (tenho certeza de que ela faria o mesmo kkkkkk) Obrigado sempre… que seu fim de semana seja abençoado! Um forte abraço

  10. Odonir Oliveira disse:

    Excelente texto. O tom de ironia ao relembrar os fatos ameniza a crueza .

    • panografias disse:

      Acho que vou terminar escrevendo um livro de memórias Odonir kkkkk. Adorava ouvir Cazuza cantar: “…eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”. Recentemente uma menina que vi nascer (minha esposa curou seu umbigo) passou por situação parecida… ela se lembrou desta história que havia contado para mãe dela quando criança. A única diferença é que ela não “mandou o médico receitar para mãe” rsrsrs (com todo o respeito que todas as mães merecem). Imensamente feliz com seu comentário… que seu fim de semana seja de bênçãos! Beijo no coração

    • Odonir Oliveira disse:

      Isso mesmo. Você tem um tom de ironia muito interessante ao narrar.

    • panografias disse:

      Acho que o texto fica mais leve (e não menos verdadeiro) desta forma, você não acha?! Sinto-me lisonjeado. Gratidão

    • Odonir Oliveira disse:

      Sandro, leu a referência ao final de Mãos de afeto a você?

    • panografias disse:

      Em verdade vos digo que: estava no meio da leitura quando vi seu comentário e despenquei para o final na mesma hora kkkkkk. Eu sou apaixonado pelos dois e percebo estas nuances… assim como os textos da Tríccia Araujo (que adoro assim como os seus) Novamente deixo expresso minha gratidão minha querida amiga! PS: agora vou terminar de ler, já já eu comento rsrsrsrs

  11. Fazer um parto é celebrar a vida, dizia dona Zelita que foi minha parteira, parteira do Sertão, quantos médicos que desenham a própria vida banalizando-a deixando seus pacientes a própria sorte. Bela história, ainda bem que você conseguiu perceber a tempo a negligência do médico, salvando a vida de sua esposa e do bebê, pena que outros não tiveram a mesma sorte. Bela descrição parabéns amigo Sandro Enesto.

    • panografias disse:

      A minha parteira foi a Don’Ana e tenho a lembrança dela conduzindo outros partos dos irmãos na nossa casa. Meus olhos brilhavam como tivesse diante de um anjo… calma, serena, voz doce angelical e no final o choro da vida! Acho que aí começa a poesia na nossa vida. Minha mãe sempre me pergunta: como pode se lembrar disso?! Você era pequeno demais nesta época. Mas acredite, me lembro detalhadamente (os mais velhos brigando comigo porque ficava vendo na ponta dos pés pelo buraco da fechadura rsrsrsrs) Orlando, meu querido amigo… deixo aqui meu carinho e gratidão por tudo na forma de um forte abraço! Que seu fim de seja seja abençoado!

    • Eu que agradeço o carinho de sempre, Bom final de semana. Um abraço fraterno do poeta Carvoeiro.

  12. Que história! Ah se eu conto as minhas…

Seu comentário é sempre bem-vindo, Amigo... obrigado !

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